A ESTÉTICA DA ENCRUZILHADA: CONTOS DE MIA COUTO
Arivaldo Leandro da Silva Monte (UFRN)
RESUMO: Neste trabalho realizamos um estudo em quatro contos de Mia Couto (2005) do livro Cada homem é uma raça: “O embondeiro que sonhava pássaros”; “A princesa russa”; “O pescador cego” e “A lenda da noiva e do forasteiro”. O estudo, sob a perspectiva da oralidade, tem como foco a observação da transformação dos componentes da realidade sociocultural de Moçambique em elemento de ficção literária – a alegoria. Na oralidade do escritor moçambicano Mia Couto, encontraremos uma linguagem que, com um olhar atento do leitor, parece esconder muito mais que uma estética literária. Uma linguagem, criando novas palavras como forma latente de um desejo de mudanças, algo que esboça uma realidade outra, repleta de criação verbal.
Palavras – chave: Moçambique, oralidade e alegoria.
RESUMEN: En este trabajo realizamos un estudio de cuatro cuentos de Mia Couto (2005) del libro Cada Homem é uma raça: “O embondeiro que sonhava pássaros”; “A princesa russa”; “O pescador cego” e “A lenda da noiva e do forasteiro”. El estudio, sobre la perspectiva de la oralidad, tiene como enfoque la observación de la transformación de los componentes de la realidad social de Mozambique en elementos de ficción literaria, en este caso la alegoría. En la oralidad del escritor mozambicano Mia Couto encontraremos un lenguaje que, con la mirada atenta del lector, parece esconder mucho más que una estética literaria. Un lenguaje que crea nuevas palabras como forma latente de un deseo de cambio, algo que bosqueja otra realidad, plena de creación verbal.
Palabras clave: Mozambique, oralidade e alegoria.
Na tentativa de subverter a língua portuguesa com os traços regionais de Moçambique, Mia Couto percorre as regiões do seu país, misturando léxicos, símbolos, mitos, histórias e culturas de povos diferentes. Assim, as etnias Shona e Sena que formam grande parte do povo de Manica, e que vieram do Sul de Moçambique para a região central da Província, podem ser representadas no conto “A princesa russa” fora de seu contexto artesanal. Do trabalho com esculturas em rochas, no conto, o povo de Manica aparece cavando minas de ouro para os russos, o que pode estar nos indicando o empobrecimento da cultura local. A Língua Macua, mais falada ao Norte do país por um povo conhecido pela comunicação, através do sorriso e pelo dom de receber seus visitantes, pode ser, na ficção, representada pelo “Pescador cego” Maneca Mazembe em sua artesania pesqueira. Mas, contrariamente ao largo sorriso costumeiro, o pescador cego esboça tristeza em sua cegueira. Já os Amafengus, da quase extinta etnia dos Abombos que um dia já foram guerreiros e são encontrados em várias regiões do país, aparecem no conto “A lenda da noiva e do forasteiro”: fracos e regidos pelo medo do passado. Mas todos eles com uma única descendência – a Língua Bantu.
Esta peregrinação cultural que resulta em uma nova forma de narrativa cheia de neologismos é que entendemos como as voltas de um caracol. Partindo de um ponto epicêntrico, as voltas vão se alargando e tomando nova forma de texto, mais rica e mais expressiva da identidade de um povo.
Vale ressalvar que as novidades lexicais no discurso de Mia Couto não representam a oralidade ou a cultura moçambicana, nem nunca pretenderam representá-las, trata-se apenas de uma forma estilística transgressora, de contestação e de denúncia, como diz o próprio escritor em entrevista à revista ISTOÉ em agosto de 2007: “Senti desde sempre a necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana”. De fato a língua portuguesa moçambicana continua a sofrer transformações, reinventada na literatura, não apenas por Mia Couto, mas também por outros escritores de seu país e de outras nações colonizadas por Portugal. O poeta Marcelino dos Santos, ex-vice-presidente da Frente de Libertação de Moçambique citado em artigo eletrônico: por uma nova leitura da África, publicada na Revista Literatura, observa que a Língua portuguesa também serviu como estratégia para driblar uma dificuldade cultural e social:
Nós queríamos integrar o continente. A nossa poesia dava conta de problemas que eram comuns a toda África. Adotar a língua portuguesa foi uma estratégia, já que a pluralidade de idiomas e o enorme analfabetismo dificultavam a difusão das nossas idéias libertárias.
Portanto as invenções lexicais do escritor Mia Couto são apenas reflexos individuais de sua vontade de querer mudar as coisas, um possível descontentamento com o presente que não compactua com as ideologias legitimadas. Desse modo, o escritor está à procura de uma raiz africana, de uma identidade cultural que não esteja congelada no tempo.
Em dezembro de 2008, em uma entrevista ao jornalista Gil Felipe do Jornal Notícias de Moçambique o escritor revela:
Eu acho que desde o meu primeiro livro há um tema que nunca me abandonou que é o tema da procura de identidades. Estas identidades que nós pensamos como sendo puras, isoladas e estáticas, não são nada disso e pelo contrário são dinâmicas.
Assim podemos dizer que Mia Couto privilegia na linguagem um modo próprio de sentir o mundo à sua volta, até mesmo porque a literatura precisa de um pouco de imaginação, para criar um mundo novo e que possa, de fato, exprimir os anseios da humanidade. Sua linguagem textual tem uma dimensão crítica que nega a ordem social vigente, mas que, na verdade, seu propósito não faz parte das transformações culturais da linguagem.
O texto do escritor, pode se dizer, está mais voltado para um plano utópico de afirmação nacional através da tradição oral, como sugere Maria Nazareth Soares Fonseca (2008, p. 13).
Uma das estratégias de linguagem que Mia Couto utiliza para essa afirmação nacional, e que muito valoriza a oralidade na escrita, é a alegoria:
A alegoria é estratégia de linguagem que abre mão de um sentido totalizador para afirmar-se constitutivamente como sendo da ordem do fragmento, da ruína da significação. Aponta, ainda, para uma temporalidade múltipla, do tempo estilhaçado, não-linear, rompendo com uma História que se quer absoluta, fazendo emergir, nos seus interstícios, falas destituídas de poder. (FONSECA, 2008, p. 58).
Uma vez separado do seu contexto original a alegoria adota múltiplos significados que podem explicar um novo sentido proposto pela imagem do texto, desde que a leitura não extrapole as fronteiras do absurdo, já que estamos falando de uma possível intenção do autor.
Em “A lenda da noiva e do forasteiro”, Mia Couto nos revela a imagem de uma noiva, Jauharia, que é obrigada a se entregar a um desconhecido forasteiro para impedir que sua aldeia fosse destruída pelo “medonhável intruso” (LNF, p. 130). Mas, ao final do conto, o guerreiro Nyambi mata o forasteiro e salva a noiva que se recusa a voltar para a aldeia. Há muito sabemos que não há nada de novidade em um casamento arranjado em que a noiva mal conhece o seu pretendente, já que essa prática, até mesmo nas sociedades Ocidentais, era bem comum até pouco tempo atrás. Também não há muita novidade quando comparamos a história do conto com muitas outras histórias em que a mocinha é salva pelo herói. Mas, e se a noiva for a própria nação moçambicana, e o “medonhável intruso”, o forasteiro for a representação da opressão portuguesa, sendo derrotada pelo guerreiro moçambicano, aqui personificado por Nyambi? A história teria aí um novo sentido, uma alegoria capaz de satisfazer a melhor das intenções. Vendo assim, o escritor atualiza modelos antigos, renova sentidos perfeitamente aceitáveis nos tempos modernos.
Na verdade, chamar Moçambique de noiva seria o equivalente a muitas outras leituras, inclusive bíblicas: “Vem, mostrar-te-ei a noiva, a esposa do cordeiro; e me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus” (Apocalipse, 21:9-10). A alegoria utilizada por Mia Couto, não apenas revela uma estratégia textual mais também sintetiza todo o conto no que parece ser um arquétipo triangular. A imagem do resumo acima pode estar simbolizando a invasão dos portugueses a Moçambique ou até mesmo a todas as terras africanas e a sua retomada pelos próprios africanos. Porém, a noiva que poderia ser também a África, depois de ter mantido contato com o invasor português, contamina-se com seus costumes, sendo impossível retornar ao que era antes. Nyambi, o noivo solitário, retorna sozinho para a aldeia, depois de libertar seu povo do jugo do invasor.
Esta imagem do herói solitário, tão típica do ultrarromantismo baironiano, concentra o que há de mais verdadeiro e intocado na África, o que ainda não foi contaminado pelo eurocentrismo, mas gravemente ameaçado de extinção, pois, isolado, o herói se vê impossibilitado de dar continuidade a sua geração.
Essa condição de isolamento não é unilateral, uma vez que, de um lado o herói, protegendo suas origens culturais, estará em eterna tensão com a modernidade trazida pela parte contaminada. A noiva Jauharia, representaria esta parte em contato com a modernidade dos portugueses. Em outras palavras, a alegoria poderia estar nos sugerindo que, nos dias de hoje, um lado não poderia sobreviver sem o outro. A tensão gerada seria o resultado inevitável dessa encruzilhada, do imbricamento de culturas, mas também uma forma de se ouvir uma voz há tanto tempo silenciada.
Essa leitura aponta para a representação do espaço moçambicano, culturalmente fragmentado, dividido entre os espaços do “dominado e do dominador”. A alegoria, por sua impossibilidade de totalidade e compreensão, reflete as tonalidades da incompletude na própria malha textual. Assim, texto e realidade social caminham juntos, ambos fragmentados: o texto alegórico que representa o social está fragmentado porque não se pode entendê-lo em sua totalidade e plenitude, o social porque vê suas tradições divididas como acontece com Jauharia e Nyambi, talvez esta seja realmente a proposta alegórica de Mia Couto, espaços fragmentados, ruína e separação como observa a crítica literária Maria Nazareth Soares Fonseca:
A alegoria seria, então, na proposta literária de Mia Couto, esse recurso privilegiado de escuta, de fazer ouvir as vozes silenciadas pela dominação, subvertendo tempos e espaços. (FONSECA, 2008, p. 58). A alegoria, como sua dimensão de imagens em ruínas é processo adequado para se escrever os conflitos dessa terra africana, tema sempre presente, como se viu, nos romances de Mia Couto. (Idem, p. 61).
De fato, a alegoria é um forte ingrediente textual para Mia Couto e uma proposta utilizada em muitos de seus contos. O escritor quase sempre emprega arquétipos triangulares bem semelhantes, com personagens interagindo e fechando o ciclo ao final do conto.
Em “O embondeiro que sonhava pássaros” a alegoria se forma da seguinte maneira: Um vendedor de pássaros que mora em um tronco de embondeiro é estranhamente preso e torturado pelos colonos com causa aparente de racismo. Um menino chamado Tiago filho de portugueses é o melhor amigo do vendedor de pássaros e tenta ajudá-lo. Ao final do conto um mistério: o menino, tentando ajudar o passarinheiro, pode ter morrido queimado pelos próprios colonos portugueses dentro do tronco da árvore ou ainda, misticamente, transitado de reino juntamente com o vendedor de pássaros. O passarinheiro (negro), o embondeiro (tradição cultural), o menino Tiago (a esperança), esta é a imagem, todos são queimados dentro de um só tronco pelas chamas do racismo. Mas, para o espanto dos leitores, o menino parece “transitar de reino”, “o passarinheiro subia as mãos para tocar as flores, enquanto pássaros soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas” (ESP, 68).
A imagem oferece muitas possibilidades de leituras, mas sem dúvida alguma, uma das mais fortes é o sinal de esperança, onde tudo transcende, tudo transita de reino, e o real é desafiado pelo sobrenatural, uma verdadeira apologia à oralidade africana. Surge das chamas uma nova forma, um novo modelo, algo diferente que o fogo ardente não consegue eliminar, não consegue apagar, é a esperança do povo – ou pelo menos não deveria apagar. Esse hibridismo cultural entre África e Europa deve resultar em algo melhor e mais forte, imune ao racismo que se alimenta do desconhecimento e da intolerância. A ignorância dos colonos é tamanha que não lhes permite ver nem mesmo aquilo que está diante de seus olhos, ateiam fogo no embondeiro com o menino Tiago dentro sem que se interroguem sobre o fato. Eis aí, a imagem do que seria o racismo cego e sem precedentes.
A alegoria também está presente no conto “A princesa russa”: Fortin (personagem narrador) é um negro cheio de falhas de caráter que se prolongam até aos seus aspectos físicos, um defeito coxo na perna esquerda. Trabalha como encarregado geral em uma mina de ouro e se apaixona por uma mulher branca (Nádia), que é casada com Iúri, patrão do encarregado geral. Nádia morre ao final da história. Fortin confessa seu amor e seus atos de covardia a um padre negro (que nunca fala) no interior do confessionário de uma igreja. Assim se passa todo o conto. O que poderia ser um triângulo amoroso fica apenas na imaginação de Fortin. Na verdade, o triângulo aqui é formado da seguinte maneira: Fortin (representante do negro aculturado e assimilado), a princesa Nádia e seu marido (o branco invasor russo que desconhece e não se adapta às terras desconhecidas), o padre negro (calado, resultado de um sincretismo religioso).
O conto termina quando a princesa morre, as minas de ouro fecham e Fortin foge para Gondola. Diferentemente dos contos de fadas, que sempre terminam com um final feliz, a morte está, quase sempre, presente nos contos de Mia Couto. Em “A lenda da noiva” morre o forasteiro, n’O embondeiro morre o menino Tiago e o passarinheiro, n’A princesa russa morre a própria princesa e assim em muitos outros contos do escritor, uma marcante presença da morte e da destruição em sua ficção.
A morte da princesa aponta, dentre outras leituras, para o fim da dominação do invasor, pode sugerir também um renascer de outra nação moçambicana: resultado do cruzamento com outras culturas, isso pode ser observado nas palavras de Fortin, quando vê suas pegadas misturadas com as da princesa: “Vejo duas pegadas, diferentes, mas ambas saídas do meu corpo. Umas de pé grande, pé masculino. Outras são marcas de pé pequeno, de mulher. Esse é o pé da princesa, dessa que caminha ao meu lado.”(PR, p. 87), os pés que pisam a mesma terra se completam e se transformam em uma mistura cultural.
Alegórico também é o próprio personagem Fortin: um negro coxo acovardado que foge às responsabilidades quando mais precisam da sua ajuda, trai por duas vezes a princesa e por duas vezes não tem coragem para salvar seus irmãos de cor no desabamento das minas: “foi pecado mas eu dei costas naquela desgraça.” (PR, p. 79). Assim era o estigma do dominado, forçados ao subjugo da assimilação, deveriam se sentir na condição de colonizados e aculturados. Quando a princesa morre, com medo da reação de Yuri, o encarregado foge mais uma vez, agora, para fora de suas terras, e só mais tarde retorna para “caminhar sobre as poeiras e cinzas das antigas minas dos russos” (PR, p. 87) algo que lembra uma cena de vitória sobre um grande inimigo: o guerreiro caminhando sobre as terras reconquistadas.
O que muito chama a atenção do leitor é a imagem que é fixada logo no início do conto: um negro aculturado se confessando a um padre negro, muito provavelmente também aculturado. Fortin não se sente confortável dentro da igreja, pede licença ao padre para mudar de posição, assim começa o conto: “Desculpa, senhor padre, não estou joelhar direito é a minha perna, o senhor sabe: ela não encosta bem junto com o corpo, esta perna magrinha que uso na esquerda.” (PR, p. 73). A perna defeituosa da personagem, a parte ruim a que considera em seu corpo, como revela mais adiante: ”mas eu acho é essa minha perna que me aconselha maldades.” (PR, p. 74). Essa perna que incomoda profundamente Fortin, pode, perfeitamente, representar o seu lado assimilado que se traduz nas suas dúvidas e incertezas quanto ao sincretismo religioso que lhe foi imposto.
A incerteza quanto ao aprendizado religioso eurocêntrico é nítida em várias passagens, mas citaremos apenas duas como exemplos, evitando a prolixidade: “Ou será Deus, quando expulsou Adão do Paraíso, não lhe despachou com pontapés?” (PR, p. 74), “Eu sei que Deus é completamente grande. Contudo, padre, contudo: o senhor acha que Ele me foi justo? Estou a injuriar o santíssimo?” (PR, p. 75). O padre não esclarece nenhuma das dúvidas e dá o silêncio como resposta, e o que era para ser uma confissão e remissão de pecados, vira um inflamado juramento herético: “Nem Deus me pode corrigir dessa certeza. Deus pode não me perdoar nenhum pecado e eu arriscar o destino dos infernos. Mas eu nem me importo.” (PR, p. 87).
As leituras sugeridas são múltiplas, mas, com certeza, pelo menos uma deve ser levada em consideração: o Estado moçambicano X Igreja católica. O Estado representado por um negro assimilado e a Igreja por um padre negro e calado, não sem voz, mas calado, como aquele que consente – o consensuoso. Esta imagem partida, de dois seres tão próximos e distantes ao mesmo tempo: um de cada lado da mesma situação é marca dual do sistema de colonização, não importam as aparências das cores, mesmo que sejam iguais, parece que sempre estarão em lados diferentes enquanto forem impostas por força de um dominador.
Desse mundo partido em dois constrói-se a imagem do colonizado invejoso, aquele que, sem consciência crítica da sua situação de colonizado deseja o lugar do outro, não com propósitos de mudanças, mas para repetir o círculo vicioso da opressão. Assim observa Fanon em Os condenados da terra:
La mirada que el colonizado Lanza sobre la ciudad del colono es una mirada de lujuria, una mirada de deseo. Suenos de posesion. Todos los modos de posesion: sentarse a la mesa del colono, acostarse en la cama del colono, si es posible con su mujer. El colonizado es un envidioso. El colono no lo ignora cuando, sorprendiendo su mirada a la deriva, comprueba amargamente, pero siempre alerta: "Quieren ocupar nuestro lugar." Es verdad, no hay un colonizado que no suene cuando menos una vez al dia en instalarse en el lugar del colono. (FANON, 1963, p. 28-29).
Esse olhar de cobiça lançado ao colonizador coloca, sistematicamente, o colonizado, dependente do dualismo colonial, algo que aliena colonizado e colonizador, aspecto este, já observado por Jean Paul Sartre no prefácio do livro. Por razões diferentes: um se reconhece no outro e um não é melhor que o outro:
Nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus grilhões; é isto que torna seus testemunho irrefutável. Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós, Isso é útil? Sim, visto que a Europa está na iminência de rebentar. Mas, direi vós ainda, vivemos na Metrópole e reprovamos os excessos. É verdade: não sois colonos, mas não sois melhores do que eles. (p. 10)
Assim Fortin deseja a mulher de Iúri, quer possuí-la em sua cama, e usa sua posição de encarregado geral para maltratar aos outros trabalhadores cativos, “gritava ordens para esses mainatos”. (PR, p. 74) era assim que Fortin se via como patrão, na total alienação cultural do desejo de estar no lugar do outro, numa espécie de cegueira estereotipada pela falta de autocrítica que o leva, sem perceber, a um ciclo vicioso.
Maneca Mazembe, diferentemente de Fortin, tem uma cegueira física inicial que o leva a uma luz ao final da história. No conto “O pescador cego” há dois tipos de cegueiras: aquela que cega os olhos e aquela que cega o espírito. A alegoria que mais expressa o cego que vê e que aparece, em alguns momentos, na mitologia grega são: Tirésias que vê muito além das aparências e Édipo que cega os olhos para não ver a própria desgraça e mesmo estando cego, encontra o caminho de volta para casa. O pescador cego também encontra o caminho de volta para casa depois de cego e é, também, depois de cego que ele vê além das aparências do corpo “magrito” de Salima, permitindo que ela entre em alto mar para pescar. Pode não haver nenhuma ligação, mas é certo que, depois de séculos de escuridão e cegueira colonial, Moçambique esteja saindo das trevas através da luz do esclarecimento da literatura. Tudo isso graças ao espírito de nacionalismo apontado no país por diversos autores.
Também em outros contos Mia Couto usa a alegoria do cego para ilustrar uma visão que vai além das aparências, a exemplo disso citamos o romance Vinte e Zinco (1999), onde o cego Andaré Tchuvisco é capaz de desenhar corpos de mulheres na terra e adivinhar coisas das vidas das pessoas:
A feiticeira pede ao cego que passe a mão pelo pescoço dela. O homem que sentisse a sua pele. O cego roçou os nós dos dedos pelo corpo da adivinha. O moço vai decifrando que letras naquela página, poro a poro. (p. 82-83).
Assim as alegorias do autor vão se formando, resgatando imagens da tradição e as colocando dentro das estruturas sociais dos dias de hoje. Ao cruzar oralidade e escrita, o escritor recria um novo espaço ficcional de encontros e convergências. Oralidade e escrita são colocadas na mesma linha vertical, mas com um agravante: a oralidade e a memória ganham emergência e ressurgem como teor textual nas ficções literárias.
Talvez uma das formas mais implicantes dessa emergência textual na ficção de Mia Couto seja a aparição dos provérbios de maneira desconstrutiva ou de maneira reconstruída. Os provérbios trazem sempre consigo a reiteração da tradição oral transmitidas pelos mais velhos, mas também reafirma o descontentamento do escritor na medida em que, atualizando provérbios e ditos populares, provocando uma tensão entre modernidade e tradição, coloca em evidência a sabedoria dos antigos. Este aspecto dos provérbios é largamente discutido por Maria Nazareth Soares Fonseca:
A recorrência da abertura dos capítulos dos romances com provérbios supostamente colhidos à tradição oral reitera o valor atribuído à sabedoria dos antigos. Ao mesmo tempo, marca uma estratégia ficcional ao também atribuí-los a personagens das histórias narradas, revelando, assim, seu caráter de invenção, de atualização/ desconstrução de seus significados e o próprio diálogo entre tempos diferentes. (2008, p. 64).
No conto “O embondeiro que sonhava pássaros” uma frase anuncia a condição daqueles que não têm casa para morar e vivem como os pássaros: “Pássaros, todos os que no chão desconhecem morada”. (ESP. p. 59). A revelação pode ser, em certo grau, assustadora, a beleza da frase contrasta com aquilo que ela pode estar verdadeiramente escondendo, uma triste verdade. Pois aquele que não tem casa para morar vive à mercê de muitas privações, mesmo aquele que não se prenda a uma família, ele precisa de uma moradia. Mas da forma poética como a frase foi escrita mais parece falar da liberdade dos pássaros comparada com a liberdade de quem não tem onde morar. Uma grande dose de eufemismo foi aplicada à metáfora, amortecendo seus efeitos sinonímicos, e o que poderia ser simples retórica de um dito popular, passa a exigir uma reflexão sobre a incompletude do ser humano que, diferente dos pássaros – que vivem a voar de árvore em árvore, gozando de plena liberdade – o homem precisa de um lugar para morar, fixar-se e criar raízes familiares. A verdade é que, dificilmente, poderemos viver igual aos pássaros.
É certo que esta é apenas uma das muitas leituras que esse provérbio pode nos oferecer. Mas importa observar como o dito popular, nas mãos do escritor, tem a capacidade de trazer à tona uma reflexão sobre um problema social tão universal e humano.
No provérbio: “carreiro de formiga nunca termina perto.” (PR, p. 73) que pode significar: a história é longa e vai demorar até chegar ao seu final, parece ter sido inspirado no provérbio turco: “Um problema é como um carreiro de formigas, nunca acaba perto”. Esse dito popular assinala para a marca da tradição islâmica, mais especificamente da religião muçulmana, uma influência esmagadora em todo o país de Moçambique. A adaptação para a realidade da personagem Fortin ganha novo sentido, não exatamente um sentido ainda ligado a um grande problema a ser resolvido, mas de uma estória longa que exige paciência para ser ouvida, assim explica a própria personagem: “Faz favor, senhor padre, me escuta devagar, tenha paciência. É uma história comprida.” (PR, p. 73).
Atualizar reinventando, desconstruir reconstruindo. Os provérbios e os ditos populares vão sendo transformados ao sabor de uma outra realidade. A ficção ganha contornos de originalidade e reluz a tradição oral, torna o conflito e a tensão quase imperceptíveis aos olhos do leitor que, sem se dar conta do cruzamento oralidade e escrita, é sugado pelo sabor da leitura e pelo deleite das cores africanas.
O aproveitamento dos ditos populares na ficção – e é bom que se diga – não procura apenas promover o encontro da oralidade e da escrita, há que se considerar a possibilidade do encontro de dois aspectos literários que se tensionam para formar uma terceira unidade que seria a marca escritural de Mia Couto. Esta marca é percebida por Inocência Mata quando citada por Maria Nazareth Soares Fonseca:
A sua artesania recria, entre outros, os conflitos entre a língua portuguesa, o idioma hegemônico ontem e hoje, e as muitas línguas autóctones do país, buscando, pela função de uma nova geografia linguística uma nova ideologia para pensar e dizer o país. Assim é que injeta no código linguístico português a cultura da oratura africana. (FONSECA, 2008, p. 63).
Dessa artesania que resulta em uma possível leitura de tensão e conflito com a língua portuguesa, observa-se que a desconstrução dos provérbios pode não ser um simples trabalho de adaptação e construção literária, mas reforça a ideologia de uma marca que subverte a realidade presente. Não obstante, o que seria para nós popularmente conhecido como “Entrar com o pé de direito”, que pode significar iniciar o ano novo com tudo dando certo na sua vida, ou ainda, iniciar um novo trabalho fazendo tudo certo, etc. É transformado em “Entrar direito na história” (PR, p. 73). Que no conto assume o significado de: entrar direto no assunto, sem subterfúgios.
Do mesmo modo os ditados populares seguintes vão sendo desconstruídos e reconstruídos: “os opostos são os mais iguais” (PR, p. 85). Uma referência a Fortin e à princesa russa, um negro e um branco, um colonizado e um colonizador, o que pode sinalizar uma leitura política em referência ao sistema colonial, já que um não existe sem o outro. Há uma grande semelhança com o ditado popular “Os opostos se atraem.” A diferença é que, neste último, os opostos se atraem e no primeiro eles são iguais, porém vivem em eterna tensão.
Em outros momentos a desconstrução nos parece marcar apenas o nível sintagmal, mantendo assim o mesmo nível semântico: “não corra atrás da galinha já com o sal na mão”. (PR, p. 74). Para dizer que não devemos ser apressados. Traduzindo para nossos ditos populares ficaria assim: “Não conte com o ovo na galinha.” Não percebemos uma mudança a nível semântico. Outro exemplo seria: “A inveja é a pior das cobras: morde com os dentes da própria vítima.” (PR, 78). Traduzindo: “A inveja mata”. E dessa maneira os provérbios se espalham por todos os contos aqui analisados: “Mas não se mede a árvore pelo tamanho da sombra.” (PS, p. 95). O que para nós seria: “Tamanho não é documento” ou ainda“ as aparências enganam”; “coragem sem esperteza é simples ousadia”. (LNF, p. 133). Para nossa realidade seria: “O cemitério está cheio de heróis”; “O homem é como o pato que, no próprio bico, experimenta a dureza das coisas“. (LNF, p. 136). Traduzindo: “Tem gente que só aprende errando” ou “é errando que se aprende.”; “ Vingança é habilidade dos fracos.” (LNF, p. 137); traduzindo: a vingança pode ser um descontrole dos sentimentos. Que se assemelha a: “A vingança, servi-se fria”.
É bom lembrar que os provérbios africanos, na ficção de Mia Couto, trazem uma nova visão de mundo, eles têm um valor formativo e informativo, é um olhar que pode revelar um pouco da compreensão de um povo. No conto “A princesa russa”, quando os russos chegam a Manica, trazem consigo grande quantidade de aparatos caseiros, inclusive empregados domésticos. Fortin não entendia a razão de os russos trazerem tantas coisas, objetos, empregados, apenas confiando na esperança de um dia encontrarem ouro e ficarem ricos. Além disso, as minas desabavam constantemente, e tudo poderia virar pó em segundos: “basta um sopro e o quase fica nada.” (PR, p. 74). Esse era um pensamento de Fortin, mas que poderia se aplicar ao pensamento geral, um pensamento que nos ensina a fugacidade das coisas. Duas realidades distintas que se encontram para discutir suas verdades e que nos lembra o título de Berman (2000): Tudo que é sólido desmancha no ar.
Os provérbios também ensinam sobre a dureza da necessidade do trabalho, pois ninguém trabalha a troco de nada. Fortin reconhece a força e a seriedade dessa afirmativa quando mandava em seus subordinados, dizia ele que “ninguém desempenha canseiras só por gosto.” (PR, p. 74). Aqui no Brasil esse mesmo ditado popular ganha um ar jocoso e despreocupado: “Se trabalho fosse bom a gente pagava para trabalhar” ou ainda: “Se trabalho fosse bom Deus não tinha trabalhado só sete dias.”
Os contos prosseguem com uma série de outros ditos populares quase sempre com poucas mudanças no sentido ao qual já estamos habituados como: “Fiquei, de queixo no peito” (PR, p. 86). Fortin expressa essa frase para dizer que ficou com medo de ser descoberto pelo seu patrão Iúri. Para nós seria: “Fiquei de queixo caído” para expressar uma admiração ou espanto por coisa desconhecida.
Nem sempre encontramos um sinal de transgressão explícito nos ditos, muitas vezes a relação pode estar dentro da própria realidade da narrativa do conto: “O barco de cada um está em seu próprio peito.” (provérbio Macúa) (PS, p. 91). Este provérbio encontra-se como um mine-prefácio no início do conto “O pescador cego” sugerindo mistério. Esse enigma é mantido por todo o decorrer da história e tudo se passa envolto de mistério e misticismo. Os macuas são exímios pescadores e seus barcos não são somente um instrumento de pescaria, eles são como uma extensão de seus próprios corpos, é ali que eles passam horas e mais horas em alto mar, às vezes dias. É claro que se trata de uma metáfora que aponta para os conflitos humanos, as angústias, os desconcertos, as guerras interiores que travamos dentro do espírito de cada um de nós. Aspectos humanos que sempre serão um mistério para o outro que não consegue ver além das aparências, e que dificilmente poderemos fazer uma leitura específica e única do que seria o barco que cada um carrega no peito. Sempre haverá um tom impenetrável e nebuloso.
Em outro momento encontraremos algo mais parecido com o que já conhecemos: “Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio.” (PS, p. 93). Continua o paradoxo, afinal, como produzir silêncio com muitas vozes? A frase pode ser bem mais reflexiva do que quando é dita em seu sentido mais objetivo, o que seria mais ou menos equivalente a “Quem muito fala pouco diz” que quer dizer: quem muito fala pode ter pouco conteúdo em sua fala, ou ainda: “está enchendo linguiça”.
As alegorias, o jogo dos paradoxos e das transgressões podem ter um endereço certo. Um destino que extrapola os efeitos estéticos e pode estar dizendo: não somos um corpo vazio e disforme, não estamos prontos para sermos, simplesmente, preenchidos ou peremptoriamente lapidados. Temos corpo, forma e conteúdo.
Os ditos populares em muito se apoiam nos ensinamentos dos mais velhos, o que, sem pretenciosidades, equivaleria dizer que: destituir os mais velhos de sua função tão preciosa seria o mesmo que pretender destituir a sociedade africana de sua tradição oral. Provavelmente, implicaria em perda de boa parte de sua história. A descrição de Amadou Hampâté Bá em seu texto “A tradição viva” nos dá uma ideia dessa unidade da tradição oral com seu povo:
Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar‑se ao alcance dos homens, falar‑lhes de acordo com o entendimento humano, revelar‑se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (BÁ, 2010, p.169)
Eis aí a totalidade do homem africano, reunindo todas as suas experiências em um só corpo.
Assim, o espaço literário de Mia Couto tenta provocar, através das alegorias e dos provérbios, uma encruzilhada que resulta em uma ficção tensa e engajada. Tensa porque os componentes da oralidade e da escrita estão sempre atravessando e protagonizando um encontro do moderno com o tradicional, ou promovendo o encontro colonizador e colonizado. Engajada porque, insistente, permite uma nova possibilidade de literatura emergente como nos é revelado no livro Mia Couto: espaços ficcionais (FONSECA, 2008, p. 13). O escritor coloca os códigos linguísticos do colonizador a serviço da tradição africana e aquilo que poderia ser um entrave, uma barreira espessa, agora, já domesticada e apropriada, torna-se como a semente do baobá ao ser despertado pelas primeiras chuvas nas savanas. A literatura moçambicana tem suas raízes fincadas e espalhadas pelo mundo.
REFERÊNCIAS
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras. 2000, p. 15-35.
CABAÇO, José Luís. Moçambique: Identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Unesp. 2009.
CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In:_____. O discurso e a cidade. 3 ed. São Paulo: Duas Cidades; Ouro Sobre Azul, 2004.
COUTO, Antonio Emilio L. Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005, p. 69-87.
______. O cego Estrelinho. In._____, Estórias Abensonhadas. 7 ed. Lisboa: Caminho AS, 2003.
______. Não à reforma ortográfica. São Paulo, 2007. ISTOÉ, Setembro 2007, entrevista concedida a Karime Xavier. Disponível em: <maldemontano.wordpress.com/.../nao-a-reforma-ortografica-entrevista-com-mia-couto/> Acesso em 10 fev. 2011.
______. Entrevista com Mia Couto. Maputo, Moçambique, Dez. 2008. Bula revista. Disponível em <www.diariodaafrica.com>
FANON, Frantz. Lós condenados de la tierra. Rosário – Argentina: Kolectivo Editorial, 1963.
FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Ferreira. Mia Couto: espaços ficcionais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas: nas literaturas africanas. Lisboa: Colibri, 199.
KI-ZERBO, Joseph. (Coord.). A tradição viva. In.:_____, História Geral da África I: Metodologia e pré-história da África. 2 ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. (p.167-212).