O EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS: MEMÓRIA, UTOPIA E IDEOLOGIA


Arivaldo Leandro da Silva Monte
Derivaldo dos Santos

Universidade Federal do Rio Grande do Norte


    O passarinheiro não tinha casa, vivia no tronco de um embondeiro misturado à natureza, vendia os mais lindos pássaros no bairro dos brancos para encantar os homens, mas acabou provocando muito mais que isso. Com inveja daquele negro invasor que contava lendas africanas e vendia lindos pássaros que alegravam as crianças dos brancos, os colonos começaram a suspeitar das suas visitas e articularam um castigo contra o vendedor de pássaros. Depois de ser preso e torturado fora trancafiado no calabouço. Mas “Tiago, uma criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perseguir fantasias”, encantado com as lendas e pássaros, assiste a tudo à distância, escondido, e resolve ajudar o passarinheiro. Sem sucesso, o menino espreita o calabouço quando o policial toma a gaita-de-beiço do vendedor e atira-a pela janela, o menino recolhe a gaita para tocá-la a fim de confortar o passarinheiro e acaba adormecendo. Ao despertar, o pequeno descobre a fuga do prisioneiro e volta para o embondeiro na esperança de encontrá-lo, mas sem êxito, resolve esperá-lo e adormece dentro do tronco da árvore. Enquanto o menino sonha com sua transfiguração em embondeiro, arvorejando-se. Os colonos, enraivecidos, cercam a árvore, pensando que o passarinheiro encontra-se em seu interior e ateiam fogo no embondeiro, Tiago, adormecido, não percebe a ação, “Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes” (p.68).

    “Pássaros, todos que no chão desconhecem morada”, é com esta expressão que o narrador apresenta seu conto. Concomitantemente, e não por coincidência, esta frase conota um sonoro grito de liberdade se a compararmos com o título do conto em questão já ambos conotam o mesmo tema por similaridade – a liberdade. Antes, porém, de embrenharmos pelas raízes e vertentes da memória do embondeiro, gostaríamos de lembrar que este conto foi escrito em plena guerra civil moçambicana. Segundo Hernandez (2005), em seu livro: A África na sala de aula, depois de cerca de noventa anos de exploração pelos portugueses, chegando a 1960 com mais de 800 mil homens com trabalho de regime forçado, 500 mortos na primeira manifestação (Massacre de Mueda) contra o regime de escravidão, somente em 25 de junho de 1975 é dada a sua independência. A partir de 1979 a Frelimo e a Renamo disputam o governo de Moçambique, travando uma sangrenta luta armada, espalhando terror pelo país.  Finalmente, em 4 de outubro de 1992, em Roma, fora decidido um cessar-fogo após 16 anos de guerra civil. Vence a Frelimo.


    “O embondeiro que sonhava pássaros” é um conto tão denso e rico que só conseguiremos nos aproximar, vagamente, das suas implicaturas literárias, relendo parágrafo por parágrafo, palavra por palavra, porém, sem essa intenção de totalização, faremos aqui uma leitura consubstanciada em apenas alguns pontos que nos interessam para justificar o nosso trabalho em detrimento dos objetivos da nossa pesquisa sobre a “Memória, história, e utopia na literatura africana na expressão portuguesa: a ficção do moçambicano Mia Couto”.


    Contam as lendas africanas que o embondeiro é uma árvore considerada sagrada por muitas tribos africanas, onde seus poetas e músicos são enterrados para que se prendam à memória do povo, fato que explicaria o poder da oralidade africana como característica essencial para a sua permanência cultural. Conscientemente, a nação africana sabe que o domínio dessa oralidade é que lhe assegura o reconhecimento do caráter histórico da memória coletiva, e não é apenas pela cristalização dos seus mitos e das suas origens, mas também porque lutam pelo reconhecimento histórico-social:

Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 2003, p. 422)

      Este espaço da memória aos poucos tem sido conquistado e reconhecido pelo mundo, desfazendo inúmeros mitos preconceituosos a respeito da história e do povo africano, eis aí a grande importância e função social dessa memória, “O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento” (LE GOFF, 2003, p. 422). O próprio embondeiro poderia ser considerado a árvore-símbolo da África, dada às suas várias fábulas e contos representativos da cultura e memória africana, no entanto, isso poderia significar tão somente mais um logro a respeito da homogeneização do povo da África. Mesmo assim, essa árvore identifica-se em sua robustez e história milenar com a memória do povo africano, fazendo uma perfeita relação da sua força e resistência com a liberdade dos pássaros, a liberdade de poder voar que, transmutando-se em liberdade humana, teremos aí as infinitas possibilidades da imaginação, do pensar, do criar e recriar, idealizando novas formas de vida cada vez mais humanas através da literatura oral, “Como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem” (CANDIDO, 2002, p.80). Voar como os pássaros é, antes de tudo, confundir a imaginação com as formas mais loucas da utopia, é transgredir a realidade para torná-la melhor aos homens, seja consciente ou inconscientemente, nada pode escapar às malhas da utopia porque é dela que se projeta o mundo, diga-se para melhor ou para pior. “Utopia, (...), são aquelas idéias, representações e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Têm, portanto, uma dimensão crítica ou de negação da ordem social existente e se orientam para uma ruptura.” (LÖWY, 2006, p.13).
    Mas a utopia não está sozinha nesse processo de ruptura e transformação da realidade social, paradoxalmente, precisamos buscar nossas aspirações não no futuro, mas no pretérito, na memória do povo, como experiência concebida que pode ter dado certo ou errado, não importa aqui, exatamente, os resultados, mas aquilo que pode ser melhorado, recriado e transformado mediante a memória coletiva ou individual, importa agora recuperar a identidade fragmentada que fora perdida no tempo e na memória como é vista pelo narrador logo no início do conto “O embondeiro que sonhava pássaros”:

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamava-lhe o passarinheiro. (p.61)

    O trecho acima revela imensa sensibilidade lírica do narrador, sem perder a literariedade da obra, pois consegue revelar a consequência de uma intensa exploração e negação cultural do homem africano pelos portugueses que durou quase cem anos, provocando uma verdadeira obnubilação identitária, deixando-o à “sombra”, na “escuridão”, ou o que restou de sua memória, em resumo, diríamos que é uma ruptura psíquica distanciando as experiências passadas da realidade presente, numa tentativa de ofuscar a memória da África, “Em verdade, seu astro não era o Sol.” E Sol, iniciado com letra maiúscula aponta para o Simbolismo, eleva o campo semântico da palavra, não apenas para uma estrela de quinta grandeza ou para uma luz fulgurante, ou ainda enquanto ser orgânico, mas para a própria vida enquanto sujeito consciente e existente, como elemento que se identifica como partícipe de um povo, de uma cultura e de uma história que lhe é brutalmente negada, “Nem seu país não era a vida.” Porque até mesmo em Moçambique, o moçambicano não era reconhecido em seus direitos, o colono rejeita essa verdade inerente ao seu legítimo dono, negando-lhe todas as possibilidades de viver em liberdade, obrigando-o a viver como estranho dentro de sua própria casa sem “sequer o abrigo de um nome” o que seria, em última instância, a perca da identidade e da memória do homem africano, este vê em seu nome uma relação imediata e direta com a natureza, resultado de uma coexistência anímica e quase religiosa.
    Mas o passarinheiro, aparentemente sem nome e sem memória, transmuta-se em felicidade para os colonos: “os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava.” (p.61).  Naquele contexto sectário e materialista dos colonizadores, nada mais utópico que o mundo dos brancos sendo embalado pela música dos negros africanos, nada mais fabuloso que os colonizadores tolerando, curvando-se e admirando a cultura africana. Por um instante a percepção ocidental de africanidade que sempre se estabeleceu pela pobreza, pela fome e miséria do povo africano é sublimada em algo bem maior e imaterial – “A arte de magicar” através da música. O encanto, a intenção utópica do autor, não pretende fantasiar pela fantasia ou sonhar pelo sonho, longe de ser simplório, há aqui uma sentença de subversão da realidade da ordem social existente, apontando para uma outra realidade futura  – se é que me permitem o paradoxo – uma realidade mais justa onde pretos e brancos possam coexistir, sem as cortinas do preconceito, sem as reprovações infundadas do homem branco colonizador que tinha controle total sobre o território moçambicano, exigindo direitos que não lhes pertenciam:

Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos – aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que volte ao seu devido lugar. (p. 62)

     Acontece que o negro já estava em seu devido lugar e tinha ele plena consciência do seu espaço, o passarinheiro reconhecia aquelas terras como sendo suas e estava disposto a continuar sobre ela, e era justamente isso que o espoliador temia. Verdade seja dita, o homem africano nunca se curvou aos costumes do colonizador, “desde 1885, com a Gazeta do Sul e o Clamor Africano (...), tinham como objetivo constituir espaços de “dignidade racial e cultural” (HERNANDEZ, 2005, p. 599), nos dias atuais, até então muitos outros jornais levantaram suas vozes contra a opressão portuguesa, com grande destaque para o Brado Africano (1931), que segundo Hernandez (Ibidem, p. 598) publicou artigos que criticavam todas as formas de desigualdade e só foi fechado em 1936 no governo de Salazar. Portanto, os colonizadores brancos temiam a consciência africana, não pela força revolucionária física que já fizera frente às forças armadas dos portugueses, mas pela força da tradição cultural e por que não dizer intelectual, motivo que os levou a criar o “Alvará de Assimilação” como forma de engodo para convencer os africanos de que a cultura europeia era a ideal:

Foi mais corrente do que se pode imaginar a idéia de que os “assimilados” renegavam o passado africano, aderindo a uma “cultura branqueada”. Advertiam que o “assimilado ideal” era o que acreditava no multirracialismo e na idéia de uma “missão civilizadora” voltada para o bem dos “indígenas”. Como esse discurso era cotidianamente desmentido pela prática colonial, aderir a ele era considerado passar para o lado dos brancos, colaborando com as desigualdades de várias ordens. (HERNANDEZ, 2005, p. 601)

    O passarinheiro não precisava de “recomendações” ou “autorizações” para pisar em seu próprio chão, era ele, o verdadeiro dono daquela terra, morava no tronco de um embondeiro, esta era a sua casa, porque ali, misturava-se à natureza, garantia suas raízes e identidade cultural, sua história, sua oralidade, tradição e memória, já fincada, embrionariamente, na expressão do menino Tiago, “criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perseguir fantasias.” (p.62), e é Tiago quem nos vai revelar uma parte da história do embondeiro, “aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. (...) Aquela árvore é capaz de grande tristezas. Os mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas. Sem ninguém por fogo.” (p.62). Esses trechos pontuam postularmente as marcas da oralidade africana, passados de geração a geração, observando que o branco colonizador também assimila os costumes dos pretos, intercambiando culturas e miscigenando raças, a dominação não dá conta de apagar a memória, antes, a memória subsiste como a semente do embondeiro, esperando o momento certo para germinar, em pleno deserto colonizador.
    Feitas acima as breves observações a respeito da literatura de Mia Couto, com relação às suas experiências críticas e de como elas se manifestam através da sua ficção, considerando os aspectos utópicos e de memória coletiva, passaremos agora a revelar a maneira sutil do autor em colocar, dentro de sua ficção, as questões ideológicas sociais do invasor português como componente literário. Para tanto, nos acautelaremos para não perdermos o foco na literariedade, dando preferência à leitura do texto, mas sem deixar de considerar suas implicaturas circundantes para melhor clareza da análise. Assim sendo, faço citar Michael Löwy em seu livro Ideologia e Ciências Sociais (2006) para esclarecimentos sobre a concepção ideológica social:

Finalmente, há uma tentativa sociológica de pôr um pouco de ordem nessa confusão. Essa tentativa é realizada pelo famoso sociólogo Karl Mannheim em seu livro Ideologia e Utopia. Para ele, ideologia é o conjunto das concepções, idéias, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução, da ordem estabelecida. São todas aquelas doutrinas que têm um certo caráter conservador no sentido amplo da palavra, isto é, consciente ou inconscientemente, voluntária ou involuntariamente, servem à manutenção da ordem estabelecida. (LÖWY, 2006, p.12).


    De longo tempo, o pseudomoralismo social europeu tem sido alvo de pesadas críticas, através da literatura dos mais diversos gêneros. A futilidade do espírito benevolente do colonizador português só diz respeito à sua idiossincrasia e para a sua própria satisfação, nunca considerando o que lhes arrogava diferente, mas, todavia, considerando somente os seus próprios valores e utilidades, a fim de legitimar seus valores ideológicos. Vejamos alguns exemplos desse falso moralismo que sustentava a casa de vidro da sociedade portuguesa nas colônias através do conto “O embondeiro que sonhava pássaros” de Mia Couto:

No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria de pensar. (p. 63)

Os portugueses se interrogavam: onde, desencantava ele tão maravilhosas criaturas? Onde se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? (p.63)


    Na primeira citação, toda e qualquer possibilidade de defesa do passarinheiro são completamente isoladas, prevalece um sentimento de revolta, onde a superioridade dominadora do colonizador faz-se juiz e algoz, podendo decidir pela vida e morte do dominado, visando à ordem estabelecida. Mas a moral da boa educação e da cultura superior lusitana não poderia ser abalada por gestos animalescos, que pudessem ferir ou colocar em dúvidas a nobreza da sua educação superior, por isso “a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos.” (p.62). Por trás das cortinas de uma ideologia, aparentemente inofensiva: mais grossas eram as muralhas da hipocrisia e da desfaçatez.
    A segunda citação revele um pouco do espanto do colonizador, maravilhado diante de uma beleza ainda completamente desconhecida para ele, e dentro do seu espírito presunçoso concluía que tudo já haviam explorado. Mas eis que este espanto não é apenas pela estética da beleza, mas porque o português é que assume o papel do desbravador e o africano do desbravado, “é assim que tem que ser”, o branco colonizador e o negro colonizado, o branco superior e o negro inferior. Admitir que o inferior pudesse conhecer algo que o superior não conhecesse era uma ofensa aos cânones ideológicos dos conquistadores. Imaginemos então se esse negro inferior pudesse provocar admirações, encantos com suas preciosas descobertas, com certeza uma nebulosa nuvem de inveja cobriria sua sombra. Mesmo assim o passarinheiro assimilava tudo à sua volta como senhor daquelas terras, não temia a cultura branca, muito pelo contrário, resistia-a, devolvia tudo com maior requinte possível, a ironia do riso: “O vendedor se segredava, respondendo um riso.” (p.63), o riso como resposta que parece inofensivo e amarelo é, na verdade, fruto de uma experiência com o não aceitar o mundo estático dos europeus, é querer projetar-se em um mundo melhor, neste ponto o riso assemelha-se à utopia por querer romper com concepções ideológicas já instituídas, para isso o passarinheiro não precisa aparecer, deixa que sua cultura transborde seu espírito e falem através de seus gestos: “O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si: - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora.” (p.63), a humildade tem endereço certo, a dobradura de antigos conceitos que ainda movem o dominador – talvez a malícia tenha cara de humildade.
    E mais adiante um gesto simples e cultural do passarinheiro, mas que pode ser visto como ato de enobrecimento e que imortaliza os grandes heróis pacifistas, no entanto, aqui o sentido heróico não tem importância alguma e sim a celebração de um peso bem maior de uma tradição, onde mito e ficção se realizam no momento em que o passarinheiro é preso, sem tentar fugir, e manso como o cordeiro, veste o fato e se prepara para seu martírio, transforma sua prisão em uma cena digna do evangelho do livro de Mateus:

“O vendedeiro se guardava mais em lenda que em realidade.
- E porque vestiste o fato?
Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra. Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião”. (p. 66).
[...]
“Barulhos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou á espreita. Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. Amarraram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro”. (p. 66).

     A natureza em silêncio revelava muito mais de si mesma do que comporta os olhos do observador e, anular-se nesse microcosmo, é chamar a atenção para a grandiosidade do espírito, é mergulhar na alma negra da África para desvendar os seus mistérios mais simples. Mas a simplicidade não é morada dos dominadores, dos desbravadores que jamais serão capazes de entender a magia do embondeiro e do passarinheiro na sua mais íntima natureza, e, recorte-se aqui: a ínfima ignorância do invasor dos aspectos culturais do dominado: “Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos?” (p.63), prova da cegueira era a soberba, a ganância e o espólio do conquistador que o impediam de ver as belezas da África.
    O invasor desconhece o verdadeiro magnetismo da oralidade moçambicana, revelado, com toda a sua força e pujança nos últimos parágrafos do conto numa mistura mística de animismo e ficção literária. Considero o ponto mais alto da narrativa, onde Mia Couto deixa transparecer de maneira mais clara “a magia das letras africanas” (SECCO,2008, p 25). O menino Tiago adormece dentro do tronco do embondeiro enquanto os colonos cercam a árvore por engano, pensando que encurralaram o passarinheiro:

     - O sacana do preto está dentro da árvore.
    Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores.
    - É o gajo mais a gaita. Toca cabrão, que já danças!
    As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre as cristas das chamas. As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes. (p. 68)
 
    O colonizador é vítima da sua própria ignorância, sem entender as razões místicas do passarinheiro e a secularidade de suas tradições. O menino Tiago transfigura-se em embondeiro, mistura-se à natureza entre fantasia e mito nas mãos do passarinheiro, imortaliza-se na memória e transforma-se na própria oralidade africana, reinventando sua história como no reinventar da oralidade conforme a tradição secular.

    Diante dessa leitura observamos como a ficção de Mica Couto percorre uma grande quantidade de componentes sociais que variam desde a História Social da África aos elementos mais inquietantes da cultura de um povo – o animismo místico e a fantasia – que se desdobram em ritmos da oralidade para fazerem parte da memória coletiva. É interessante observar o cumprimento de um ato considerado mito em realidade literária: como a lenda do embondeiro que se suicida por via das chamas quando se encontra em grande tristezas e mais tarde é incendiado pelos colonos provocando, de fato, grandes tristezas – mistura de mito e ficção.
    Também consideramos as possíveis implicações críticas sociais do escritor que se revelam através do seu estilo fantástico e utópico, desfazendo ideologias e recriando histórias.     

Referências
CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. In:______. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Editora 34 ltda. 2002.

COUTO, Antonio Emilio l. O embondeiro que sonhava pássaros. In:_____. Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005, p. 69-87.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 3 ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1999.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. S. Paulo: Selo Negro, 2005. p. 11-44 e 520-612.

LE GOFF, Jacques. Memória. In______. História e memória; trad. Bernardo Leitão [et al] 5 ed. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2003

LÖWY, Michael. Ideologia. In:______. Ideologias e Ciências Sociais. Elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortrez, 2006.

SECCO, Carmem Lúcia Tindó. A arte de magicar. In.: ______. A magia das letras africanas: ensaios sobre as literaturas de Angola e Moçambique e outros diálogos. 2 ed. Rio de Janeiro: Quartete, 2008.


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