ORALIDADE E MAGIA MOÇAMBICANA:
“A LENDA DA NOIVA E DO FORASTEIRO”
Arivaldo Leandro da Silva Monte
Derivaldo dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Antonio Emilio Leite couto, escritor moçambicano mais conhecido como Mia couto, foi militante da Frente de Libertação de Moçambique – FRELIMO. Talvez por este motivo sua ficção seja berço relevante de questões sociais e históricas de Moçambique, sempre observando aspectos e consequências deixados pelo longo processo de roedura do território moçambicano pelos portugueses. Também preocupado com a identidade cultural e memória coletiva desse povo, o escritor tenta recriar a língua portuguesa com uma influência moçambicana, utilizando-se de léxicos de várias regiões do seu país e produzindo um novo modelo de narrativa africana a que ele mesmo chama de “falinventar”. Considerando este contexto, o presente ensaio pretende analisar o conto “A lenda da noiva e do forasteiro” do livro Cada homem é uma raça (2005), tomando como referência as sistematizações teóricas e críticas de Walter Benjamin (1994) observadas em seu ensaio “O narrador” onde “a arte de narrar está em vias de extinção” (p.197) por falta de intercâmbio de experiências entre as pessoas e a modernização dos meios de produção, antes, artesanais e pessoais, hoje industrializados e impessoais. Já não existe mais o mestre e o aprendiz dentro da mesma oficina. Perde-se aí a oralidade em meio ao mundo das técnicas e da modernização.
Palavras – chave: oralidade, memória e identidade cultural na ficção moçambicana.
Benjamin considera o distanciamento do narrador um fenômeno provocado pela falta de experiências, isso porque “as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo (p.198)”. O mundo tem cada vez mais pressa em receber e repassar informações, por isso mesmo aposta nos processos tecnológicos da ciência moderna. Os homens agora podem perfeitamente se comunicar sem que precisem estar no mesmo lugar ou receber informações de todo o mundo, sem que precise levantar da poltrona de sua sala. Mas isso acaba distanciando os homens daquilo que lhe é mais natural – a capacidade da oralidade ou como afirma Benjamin a “faculdade de intercambiar experiências” (p.198) – o narrador torna-se mais um observador à distância, trabalhando com as experiências dos outros, sem envolvimento pessoal, narrando aquilo que não viveu, mas aquilo que lhe fora informado sem a prévia propriedade de conhecimento como uma informação rápida. Essa característica culmina na perca do senso prático, e “O senso prático é uma das características de muitos narradores natos.” (p.200). Esse aspecto talvez seja o mais importante para o narrador clássico que através dos conselhos, provérbios e ensinamentos mantém sempre viva a chama da oralidade:
Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir, seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (p. 200)
Para Benjamin a morte da narrativa com base na falta de intercâmbio das experiências teve seu início marcado com o surgimento do romance por ser “essencialmente vinculado ao livro” (p.201), e depender da invenção da imprensa para que pudesse ser divulgado, este, por sua vez, seria um dos pontos que marcaram o início do período moderno, colocando em xeque a tradição oral da “poesia épica”. Esta observação é decorrente do processo de individualização do romance que não precisa essencialmente de uma troca de experiências para ser concluído, aqui o romancista isola-se do mundo em suas próprias reflexões, não compartilha pensamentos, não ouve e nem dá conselhos, o mundo passa a ser visto através de um único olhar que, sem o aval da experiência intercambiável torna-se unilateral. Dessa forma, o romance não teria em sua procedência qualquer tipo de ensinamento prático com base na oralidade:
O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (p.201)
Vista com essas características, a narrativa clássica é vinculada ao trabalho do artesão, “uma forma artesanal de comunicação” que está ligada diretamente aos códices da memorização das histórias contadas para que um dia ela possa ser recontada, pois “contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas.” (BEMJAMIN, p.205). Conservar histórias na memória, segundo Benjamin, exigia um processo de entrega total ao trabalho artesanal, certa profundidade de “distensão”. Enquanto se fiava a rede, as histórias iam sendo contadas sem o interesse do “puro em si”, ou seja, como em “uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.” (p.205).
História e memória são dois aspectos inseparáveis em uma narrativa para uma função humanizadora, este vínculo é milenar, pois desde cedo o homem se rendeu aos seus encantos e benefícios, como observa Le Goff (2003) seja a história com seus critérios objetivos e universais, com suas relações e sucessões ou a ideológica com suas tradições estabelecidas (p.424). Seja qual for a sua definição, a história precisa de um conjunto de armazenamentos que se reportem à memória para exercer a sua principal função social – a de narrar:
Assim, Pierre Janet “considera que o ato mnemônico fundamental é o “comportamento narrativo”, pois se trata de comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constitui o seu motivo” (Florès, 1972, p.12). Aqui intervém a “linguagem, ela própria produto da sociedade” (ibidem). (LE GOFF, p.421)
Le Goff ainda observa que a memória assume assim um papel importante na função de narrar e se constitui em “um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em transbordamento.” (p.422). Mas essa função de narrar também assume a forma do “poder” em muitos momentos da história da memória, dividindo a sociedade em classes de dominados e dominadores com propósitos ideológicos de se manter no poder:
Finalmente, os psicanalistas e os psicólogos insistiram, quer a propósito da recordação, quer a propósito do esquecimento [...] nas manipulações conscientes ou inconscientes que o interesse, a afetividade, o desejo, a inibição, a censura exercem sobre a memória individual. Do mesmo modo a memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. (p.422)
Esta descrição dominadora pode ser observada também no texto “O narrador” de Benjamin que reconhece a influência do capitalismo burguês na criação do romance na sua forma mais individualista e heróica, o qual depende exclusivamente da imprensa para a sua fabricação e propagação, disso sobrevêm os ideais dos novos burgueses em compartilhar o domínio econômico e social com a aristocracia, acelerando o desenvolvimento econômico. Assim a imprensa também teve seu papel fundamental para este crescimento acelerado que culminou na rapidez da informação:
O romance, cujos primórdio remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. [...] por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antiga que fosse suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Esta nova forma de comunicação é a informação. (p.202)
Mas a função de narrar encontra sua principal sedimentação e justificativa na memória quando associada à “memória coletiva” com uma visão transformadora do futuro. Assim, resgatar a memória é dever mais que histórico, é também um olhar crítico voltado para o passado, aspirando a um futuro diferente, se possível, bem melhor e mais justo. Essa visão não só tem uma “dimensão utilitária” e modificadora como observou Benjamin, mas também ideológica e contestadora. Muitos desses valores se perderam no “sentido da vida”:
Com efeito, “o sentido da vida” é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão de perplexidade do leitor quando mergulha da descrição dessa vida. Num caso, “o sentido da vida”, e no outro, “a moral da história” – essas duas palavras de ordem distinguem entre si o romance e a narrativa, permitindo-nos compreender o estatuto histórico completamente diferente de uma e outra forma. (BENJAMIN, 1994, p.212)
A partir dessas considerações sobre o texto “O narrador” de Walter Benjamin (1994), começaremos nossa leitura do conto “A lenda da noiva e do forasteiro” do moçambicano Mia Couto, tentando contemplar os aspectos da oralidade e da memória nas narrativas africanas, e como essa oralidade perpassa a ficção do escritor de maneira crítico-social.
Eis o meu segredo: já eu morri. Nem essa é a minha tristeza. Me custa é haver só uns que me acreditam: os mortos.
“A lenda da noiva e do forasteiro” é contada por um estrangeiro que pertence a um outro mundo – o mundo dos mortos – mesmo assim narra sua própria saga até o momento de sua trágica morte nas proximidades de uma aldeia Amafengu – como se autodenominam os sobreviventes da antiga tribo Abambo.
O forasteiro “o medonhável intruso, irreputado intromissionário” acompanhado de seu cão “de maldade consagrada” é recebido com desconfiança pelos nativos que começam a associar sua presença com a má sorte dos recentes acontecimentos da aldeia, “homem e bicho se vizinhavam”: a chuva parou de cair, camponeses começaram a desaparecer subitamente, e o forasteiro se torna uma ameaça para os aldeões. O medo começou a se alastrar pela aldeia, trazido com lembranças de guerras e massacres já sofridos no passado, entoados pelos guerreiros Zulus. Para por fim àquela ameaça o caçador Chimaliro resolve enfrentar o mal e sai à procura do estrangeiro, desaparecendo misteriosamente, instaurando ainda mais rumores e medo entre os camponeses.
A solução encontrada pelo velho Nyalombe, chefe da aldeia, foi entregar Jauharia, noiva de Nyambi, casal que detinha única promessa e esperança de renovação de seu povo, assim deveria ela oferecer todo o seu amor ao intruso como forma de sacrifício. A jovem parte da aldeia rumo ao seu horrível destino. Depois de algum tempo, Nyambi, não suportando a saudade de seu amor, resolve enfrentar o perigo mesmo contra a vontade de Nyalombe e parte para a floresta, mata o intruso, mas Jauharia já estava apaixonada pelo homem estranho e resolve ficar. Nyambi, sem entender a atitude de Jauharia e entristecido, retorna para a aldeia sozinho, colocando fim à sua investida heroica.
Mas o que poderia parecer apenas mais uma história é, na verdade, uma densa ficção que reúne grande parte do folclore cultural moçambicano. O mito, o mistério e o extraordinário são elementos poderosos e antigos dentro das narrativas populares africanas, por vezes, confundem-se com os mitos ocidentais, dando novas formas às antigas, e criando novas possibilidades para as narrativas de ficção que, ganhando a artisticidade da oralidade, estes elementos se transformam em componentes literários ou signos orais representantes da cultura africana, deles dependem sua identidade e memória.
Mia Couto, aqui, faz com que estes componentes despertem o subconsciente do leitor para um passado ainda marcante na memória africana – o massacre do povo Abombo por outras tribos rivais, num passado muito distante. Este fato também acaba retomando uma época mais recente, lembrando o massacre provocado pela colonização portuguesa. Uma história que insiste em ficar na memória coletiva do povo: “o passado: alguém o enterra em suficiente fundura?” (p.131) - diz o narrador. Por outro lado, a pergunta abre discussões antigas sobre as condições de vida precária do povo Amafengu ainda nos dias de hoje.
Muito embora estes aspectos da história não sejam contemplados pelo conto de maneira direta, a pergunta acaba emergindo e reunindo elementos sociais e psicológicos para a formação contextual e interpretativa do leitor, num misto de história social e mito. Este olhar do moçambicano voltado para as verdades históricas da colonização portuguesa no passado, ainda bem recente na memória do povo moçambicano, não abandona as características artesanais do bom contador de histórias a que Benjamin se referiu em sua teoria “O narrador”, não tem a simples intenção do “puro em si” da informação crua e imediatista, pois essas verdades históricas no conto não se configuram como informações prontas e acabadas, que se pode ler e descartar no dia seguinte, como se já estivessem desatualizadas. No contexto literário elas ganham novos significados e juízo de valor, exigem uma reflexão mais atenta por parte do leitor, um aprofundamento no espírito humano, algo que está sempre atual por si mesmo, pois a humanidade vive em perene vacilação como nos revela Montaigne em seu ensaio “L’humaine condition ”, ou no mínimo “como algo que exprime o homem e depois atua na própria formação do homem” como observa Antonio Candido ao demonstrar a função humanizadora da literatura ( 2002, p.80). Deste modo a narrativa preserva as substâncias principais da oralidade: o ato de contar, recontar e tornar novo o que se conta, usando para isso o imaginário, a magia, o fantástico e o extraordinário que imprimem a marca do narrador e se constituem em ficção artesanal:
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1994, p. 205)
O escritor moçambicano também usa velhos arquétipos da mitologia grega, mitologia africana e memória da história social do velho continente que sustentam a estrutura da narrativa. Tudo isso parece fazer parte de um arcabouço de experiências, não apenas em tentativas de recriar, “falinventar” uma língua com influências moçambicanas como já fora dito pelo próprio escritor em diversas entrevistas, mas, sobretudo, uma tentativa de mostrar ao mundo a força da oralidade africana sem os preceitos piegas do casuísmo ou da mesmice, muito pelo contrário. Em “A lenda da noiva e do forasteiro” a intertextualidade da magia africana com os mitos ocidentais fortalecem ainda mais essa tradição oral que vem ganhando força, segundo Hernandez (2005), desde a década de setenta quando o nacionalismo se faz presente no Velho Continente e, a arqueologia, juntamente com as tradições orais, reunia informações que a linguística e a etnografia ainda não dispunham no momento (p.26), completa ainda que estas informações tenham sido de grande relevância para a “construção histórica de civilizações predominantemente orais” (idem). Nesse instante a figura dos tradicionalistas , detentores do “conhecimento da palavra falada” tiveram papel fundamental na construção da história da África. Os griots também tiveram sua parcela de relevância nesse processo de formação, porém, com menor rigor já que os griots não tinham o mesmo compromisso com a fidelidade da palavra, eram narradores mais livres, embora a “verdade prevalecesse para a harmonia dos grupos sociais” (p.30). Esses narradores espalhavam suas histórias por todo o continente de geração em geração, de aldeia para aldeia, de família para família.
Logo, fica fácil compreender por que a oralidade africana é tão evidente e importante na sua literatura, ela vai muito além da ficção literária ou da cultura, da mitologia e das lendas, é também parte constitutiva da História social da África. É com este olhar voltado para a oralidade e a tradição que Mia Couto se apropria desses componentes constitutivos, transformando-os em elementos de ficção literária e é esse processo de transformação que veremos no decorrer da análise.
O conto de Mia Couto configura-se como uma narrativa que tenta obedecer às tradições orais, considerando-se que esta narrativa se constitui das formas artesanais do contar, pois é o próprio forasteiro, que viveu a história, quem a conta em detalhes, reproduzindo provérbios dos aldeões, conselhos e ensinamentos, tentando obedecer “a natureza da verdadeira narrativa” segundo Walter Benjamin (1994, p. 200) para quem a narrativa deve evitar explicações desnecessárias e não interferir no contexto psicológico do leitor ao resguardar a aura de mistério. Vejamos a citação:
O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação. (BENJAMIN, p.203)
Assim, o escritor dá a ver um novo florescer das velhas fórmulas do contar e mantém o “extraordinário” e o “misterioso” vivos dentro de suas narrativas com todas as suas formas artesanais do contador de histórias, dessa maneira, sua ficção vai se apropriando desses elementos, antes pertencentes a uma realidade social destituída de valor estético ou crítico para depois se transformar em ressoante grito de reflexão literária. E quem melhor do que um viajante forasteiro para contar suas próprias experiências de vida? Como observa Benjamin (1994, p. 198). A resposta que agora parece absolutamente lógica para ser respondida toma outra dimensão quando descobrimos que o narrador não pertence mais a esta vida, mas ao mundo dos mortos: Eis o meu segredo: já eu morri. Nem essa é a minha tristeza. Me custa é haver só uns que me acreditam: os mortos. – assim começa a saga póstuma do forasteiro viajante, anunciada por ele mesmo, já desacreditada pelos vivos, mas aceita pelos mortos. Embora o restante do conto seja narrado por uma falsa terceira pessoa, com o narrador assumindo uma posição de onipresença, seja na aldeia, seja na floresta junto ao caçador Nyambi, ou no sítio do estrangeiro com Jauharia, prevalece o entendimento da primeira pessoa por assim conservar a veracidade do enunciado póstumo no início do conto. O enunciado traz um mistério que angustia eternamente a condição humana: o medo da morte e a grande dúvida: há ou não vida após a morte? O que uma alma poderia nos revelar, considerando que ela pode estar em qualquer lugar sem ser percebida e pode dizer o que bem quiser, sem receio ou medo que qualquer consequência moral abale seu caráter, como ocorre em Memórias póstumas de Brás Cubas ? Muito embora estas questões não sejam prementes no conto “A lenda da noiva e do forasteiro”, e nem tenhamos intenção de discuti-las aqui, elas acabam surgindo naturalmente como forma de reflexão filosófica de uma história ou experiência de vida, inicialmente bem contada por alguém que já morreu, e que tenha interesse na fidelidade da verdadeira narrativa.
Com efeito, no conto “A lenda da noiva e do forasteiro” o narrador não segue o mesmo caminho das Memórias póstumas, prefere a falsa terceira pessoa, entende-se, para facilitar a sua rápida circulação entre espaço e tempo, dada à curta narrativa que já é uma característica do próprio conto. Ao mesmo tempo utiliza-se do discurso indireto livre para não se distanciar das personagens e manter vivas as características do discurso da oralidade africana.
Eis aí, um ponto crucial da “natureza da verdadeira narrativa” no conto – a experiência de vida do forasteiro contada à maneira e trejeito da região, marcando a oralidade africana:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. [...] “quem viaja tem muito o que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. (BENJAMIN, p.198)
Anônimo é o forasteiro que chega à aldeia dos amafengus, sem nome, sem identidade, sem um lugar fixo para morar, como os viajantes que vinham de muito longe, porém, com a autoridade de contar segundo Benjamin. Estes contadores desaparecem logo em seguida, feito os poetas-rapsodos da antiga Grécia ou um Griots africano. No entanto, diferentemente do rapsodo ou dos Griots, o forasteiro dessa história não foi escolhido pelos deuses, nem tão pouco pelo povo da aldeia. Nessa história ele se configura com uma imagem fortemente distorcida o que era usado para marcar as grandes diferenças culturais de outras tribos, aqui a desfiguração cultural é re-significada, já que a figura descrita do homem toma forma “medonhável”, completamente desconhecida e sem “versões”, chegando ao máximo de uma distorção. Tal descrição na narrativa não aconteceria, nesta mesma proporção, com homens de outras tribos da região, isso por terem grandes semelhanças étnicas e culturais, sendo mais provável a distorção em grande escala e grau um privilégio usado para distinguir a cultura colonizadora do homem branco:
Certa vez, porém, passou por ali um forasteiro. Era homem sem retrato nem versões. Se muito chegou, mas ficou. Todos receavam o medonhável intruso, o irreputado intromissionário. Nos olhos dele, em verdade, não aparecia nenhuma alma, parecia o cego espreitando fora das órbitas. (COUTO. p. 129)
Este último tipo de visitante é mais compatível com a descrição do forasteiro “intromissionário”, aquele que vem de fora sem ser convidado, planta suspeitas e não se sabe nada a seu respeito, não tem o direito de falar porque é perigoso, pode provocar influências negativas, prova disso é a ausência de voz do intruso que em nenhum momento é ouvido ou interpelado durante toda a narrativa, pois todo contato pode ser danoso, malévolo e contaminar a aldeia com ideias estrangeiras, costumes e cultura o que, de fato, acontece com Jauharia ao final do conto como veremos mais adiante.
O que estamos querendo demonstrar acima é a apropriação feita pelo escritor de um elemento cultural africano, o de marcar as diferenças culturais pela deformação do estrangeiro, para depois transformá-lo em um componente estético literário com valor crítico-social, ou seja, aquilo que era parte da cultura e da tradição oral, agora pode ser visto também como uma função contestadora, revelando o abandono e o descaso social com o povo “abombo”; o medo e a opressão provocados pelos anos de guerras: primeiro com os guerreiros zulus e depois os efeitos devastadores por quase duas décadas de guerra civil.
Nesta passagem a marca da oralidade fica por conta da aura de mistério traduzida na voz dos personagens: “– Mas esse homem: de onde veio, quem é o nome dele?” a resposta, ninguém sabia, mas todos lembravam que o forasteiro havia chegado à época de inverno e trazia um cão consigo, quando os dois sumiram na mata a chuva parou, misteriosamente. A relação do forasteiro com a natureza é: o forasteiro levou a chuva consigo, trouxe má sorte para a aldeia, sem chuva não há plantação e, por conseguinte não há o que comer, vamos expulsar o estrangeiro e tudo estará resolvido. A leitura parece lógica para as práticas da realidade cultural civilizada do Ocidente. No entanto, na África, esta relação é apenas parte de um contexto maior, sistematicamente organizado para dar desfecho a uma cultura de oralidade e tradição, é o motivo que dá início a uma narrativa, ensinamentos, provérbios e conselhos que dão vida às histórias africanas e sustentam suas tradições da arte de contar em volta da fogueira há séculos. Essas características podem ser observadas na seguinte citação:
Os dias se descontavam na despesa da vida. O lugar seguia na sua descampada solistência. Começaram, então, os estranhos desaparecimentos. Os camponeses, um após outro, deixavam de constar. Pareciam eram atirados num fundo abismo. O medo era motivo de muito enquanto, exclusivo das almas. À noite, no regaço da fogueira, se juntavam os sussurros. Os mais velhos puxavam antigas maldições. (COUTO, p. 131)
Tudo gira em torno da oralidade e da sua tradição na África. As palavras recriadas pelo narrador e as frases que omitem conectivos ou apresentam falhas na tentativa de se reproduzir o regionalismo tribal como: “solistência”, “deixavam de constar”, “Pareciam eram atirados num fundo abismo”, “motivo de muito enquanto”, “se juntavam os sussurros”, “enquanto sonecava”. Todos esses ingredientes se misturam com a tradição de narrar, vão sendo apropriados pela ficção, juntam-se a outros elementos da tradição como a reunião em volta da fogueira para contar histórias ou discutir os problemas da aldeia. Tudo isso vai dando corpo à narrativa como a argila dá forma à escultura e, mais adiante, acrescenta-se os aspectos psicológicos do medo e da fantasia, dois ingredientes importantes para o domínio da arte de contar, reúnem elementos sociais em torno de um mistério e se transformam “em fronteiras móveis da oralidade se tecem pela contagem interminável das contas do colar da vida, nas suas voltas e mais voltas ao redor do fio.” (SECCO, 2008, p.27) . É também o elucidar crítico sobre um repensar da visão histórica.
A citação de Mia Couto revela perfeitamente o momento mais propício para se contar uma história: “À noite, no regaço da fogueira”, e quem conta são os mais velhos da aldeia, como mandam as tradições da hierarquia tribal. O imaginário, mesmo sendo uma invenção é também um forte tempero que alimenta as fantasias e faz a história ficar mais interessante com elementos verdadeiro da história social e da memória coletiva:
O estranho abrigava-se em legível distância. Aos poucos, ele se foi tornando assunto. E nas noites, sob o estalar das estrelas, as falas não variavam: o homem, o cão. Conversa de sombra, só para afastar silêncio. Todos avançavam versões, atribuindo razões ao intruso. Inventavam, sabia-se. Mas todos escutavam crédulos. (COUTO, p. 130)
Se a arte de contar entrou em declínio, segundo Walter Benjamin (1994) em magia e técnica, arte e política por falta de experiências que estão sendo perdidas pela técnica da modernização e pela rapidez da informação – no conto “A lenda da noiva e do forasteiro” vemos uma tentativa de recuperação daquilo que foi perdido no passado. Podemos pensar mesmo, que o narrador tenta se colocar como um apologético da narrativa oral, da magia e do mistério que fluem com facilidade na oralidade africana, “O magnetismo exercido pelas literaturas de Angola e Moçambique, das quais ora nos ocupamos, advém, pois, de várias formas de magia.” (SECCO, 2008, p.26). Contudo, não podemos esquecer que toda essa magia, não é mérito de nenhum escritor, ela é fruto da cultura africana, de uma tradição oral milenar. Mia Couto, como bom observador e escritor autóctone, sabe aproveitar muito bem cada espaço desse campo magnético e mágico para predomínio da cultura oral africana, digo, da oralidade em seu sentido mais amplo, incluindo linguagens, mistérios, magias, o miraculoso, o fantástico, os conselhos, mitos, provérbios, lendas, advinhas, histórias e outras formas de contar e recontar sem, contudo, perder o foco crítico/social – que se transformou já quase em uma égide da cultura africana nas ficções literárias do moçambicano.
“A lenda da noiva e do forasteiro” tem como força maior da sua oralidade os seguintes elementos: o incrédulo, o misterioso, o suspense, mito e fantasia, juntos trazem como pano de fundo as marcas da história social de um povo dizimado pelas antigas guerras tribais em disputas de terras mais férteis e ricas que proporcionam poder e status. Mas a história pode ser, também, percebida em seus interstícios críticos-sociais e colonizadores como veremos mais adiante.
Com respeito aos três primeiros elementos, acima sublinhado, destacamos dois trechos, dentre muitos que se encontram no conto, que podem sintetizar os três aspectos. A primeira citação se refere ao forasteiro, às histórias contadas a seu respeito, tudo fruto da imaginação, da leitura de um mundo que busca sua explicação nas formas mágicas das tradições, na cultura da oralidade, na experiência de um povo milenar sem a preocupação limitada da informação, mas talvez para manter a coesão cultural do grupo ou a sua unidade de memória coletiva, ou quem sabe, trata-se do prazer de narrar:
- Vimos o quê? Vimos que a língua lhe saía fora da boca, passeava sozinha, longe do corpo.
Os escutantes nem duvidavam. Já imaginavam a cuja língua vagandeando, húmida (sic), cuspinhosa. Falava? Lambia, beijava? Ninguém podia confirmar. Nos rumores da noite, porém, todos em tudo viam obra da língua errante. (p. 130)
Observe que, mesmo com a explicação do narrador a respeito da imaginação dos ouvintes, o texto continua mantendo fortemente sua aura de mistério e consegue deixar sua marca de magia sem o desencanto da verdade pura.
A segunda citação refere-se ao aspecto mito e fantasia. O cão que acompanha o forasteiro e assume as características danosas do homem de maneira sobrenatural. O animal sofre uma espécie de metamorfose do mal, juntamente com seu dono, e assume um papel importante dentro da ficção, não se trata mais de apenas um cão, mas um ser, uma entidade misteriosa que participa e influencia nos acontecimentos da narrativa, assume uma simbologia de poder e medo conforme os mitos da cultura africana. A entidade, por sua vez, sofre um hibridismo cultural das representações e signos da cultura Ocidental, imbuídos de significados e símbolos africanos:
E sobre o cão? Junto ao desparadeiro do dono, o carnídio nunca se afastava do chão. Só se levantava quando o dono se achegava. Para os presentes, vultos que fossem, ele tinha os dentes prontos, profissionais. Piava com a fala dos mochos! Não era parecença de voz, não. Era falas iguais, gémeas-gemidas. O cachorro ladrepiava. E assim, cão e dono, mútuos farejavam as manhãs. [...] saía-lhe dos beiços uma baba verde-espumosa, de maldade consagrada. Tinham-lhe visto morder um cabritinho. [...] Primeiro desfizeram-se os cornos. [...] Desconsumiram-se, líquidos, entornados. [...] e acabou-se vazado, poeira, farelo de bicho. Todos condiziam: o cão voava. Assim se explicavam as piações. O animal se encorujava no cimo das árvores, a baba pingava queimando folhas e ramagens. O cuspo deitava fervura no chão, parindo fumos azulentos. (p.130 e 131)
O que mais chama a atenção nessas duas citações são os aspectos alegóricos e mitológicos usados na estrutura da narrativa para desenvolver a história. Em muitas regiões da áfrica, o cão, caçador noturno, é mensageiro entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos . É através do feiticeiro que suas informações são passadas para o resto da aldeia, isso acontece, por exemplo, na República do Congo nas tribos Bantus que se espalharam por toda a África Austral, onde sonhar com cão, guardião do inferno é mal agouro e pode trazer a morte para o seio da família. Com esta relação estreita do cão com a morte, é mais fácil entender a força da sua oralidade e seus efeitos sobre a cultura africana no momento em que o intruso é visto na aldeia com um cão.
Assim, os feiticeiros Bantus, ao consultarem as pessoas da aldeia sobre o futuro, por terem sonhado com cães, hipnotizam-nas, colocando em seguida essas pessoas no fundo de um poço ao lado de um cão, para que o animal possa guiá-las pela escuridão das trevas com uma das funções do deus Anubis . No conto, ao final da história, Nyambi mata o forasteiro e atira-o ao fundo de um poço, mas curiosamente não se preocupa em caçar e matar o cão. Isso implica dizer, de maneira simbólica, que o intruso, sem o seu companheiro e guardião, não terá como se orientar depois da morte, podendo ficar preso no inferno para cumprir sua penitência. Ou pode ser ainda que Nyambi tivesse medo de matar o animal e trazer a má sorte de muitos anos para si e para seu povo ou simplesmente não matou o cão porque era protegido de Jauharia. De uma maneira ou de outra o intruso, agora morto, ficará preso para sempre no abismo do “ventre da terra”, e o mal será eliminado, definitivamente:
O estranho junto a uma fundíssima fenda no chão, puxando uma infinita corda no cabo da qual se prendia um balde. Nyambi nem reconheceu as redondezas. Se atirou ao forasteiro cravou-lhe o facalhão, vezes sem conta. Depois com força que a si mesmo surpreendeu, levantou o corpo do outro e lanço-o no abismo. [...] parecia trovões nascidos do ventre da terra. (p.138)
Uma outra leitura está associada à metamorfose do cão com a coruja , cão com asas, cão que voa, todas encontradas na simbologia da mitologia grega, na representação de Grifo , Esfinge, Dragão, todos envolto de muito mistério e sempre atormentando uma aldeia de camponeses que, indefesos, precisam da ajuda de um herói para salvar o povo ou uma princesa das garras da quimera. Da mesma maneira Chimaliro e Nyambi tentaram livrar sua aldeia do medo do intruso forasteiro e libertar Jauharia.
Da mesma forma o forasteiro nunca se afasta de seu cão e vice-versa, os dois são um só e guardam a mesma descrição de medo. Inseparáveis, como numa forte tentativa de metamorfoseá-los com o mal, com o que há de mais cruel, com a morte. Observemos os seguintes trechos retirados do conto: “O estranho trazia um cão, seus passos se uniam um a dois. Homem e bicho multipingavam” (p.129); “E nas noites, sob o estalar das estrelas, as falas não variavam: o homem, o cão” (p.130); “E sobre o cão? Junto ao desparadeiro do dono, o carnídio nunca se afastava do chão” (p.130); “todos se afastavam, tremedrosos, sempre que homem e bicho se vizinhavam.” (p.130-131). De certa forma os medos da presença do forasteiro acabam se confirmando em alguns momentos da história: a chuva que foi embora; o desaparecimento misterioso dos camponeses e do caçador Chimaliro; Jauharia não retorna para a aldeia e tira toda a esperança de dar continuidade de tradição e até mesmo de vida ao seu povo; a confirmação da presença da morte, ironicamente de quem a trouxe o próprio forasteiro.
Mas, apesar das semelhanças mitológicas serem uma evidência muito forte – para dar espaço e lugar às histórias e lendas africanas, à memória coletiva de um povo que não consegue esconder o medo do passado – são as referências histórico-sociais que apontam, organicamente, para a matéria de ficção como base da oralidade da narrativa, ou seja, são os componentes e os elementos retirados da cosmogonia africana que dominam, por assim dizer, a essência da proposta e do mosaico de heterogeneidades da estrutura da narrativa, esclarecido assim, para não confundirmos a semelhança e a diversidade discursiva com a mera imitação:
O medo era motivo de muito enquanto, exclusivo das almas. À noite, no regaço da fogueira, se juntavam os sussurros. Os mais velhos puxavam antigas maldições: nós somos amafengu, o povo esfomeado que procura serviço de viver, pobres que pedem a pobres. Este forasteiro é lembrança dos tempos de perseguição. – quem sabe ele é o Amangwane? Falavam do guerreiro zulu, autor de sangue e matanças. Um estremor agitou a assembléia. O passado: alguém o enterra em suficiente fundura? (p.131)
A referência à guerra generalizada chamada Mfecante (esmagamento) que ocorreu entre 1815 a 1835 na África Austral tinha o guerreiro Zulu chamado Shaka como líder. Na sequência, surgiu o sultão Mataka I (1876-1912) que trouxe riquezas e grande prosperidade para seu povo, teve cerca de 500 mulheres e reinou com crueldade, seu nome era Nyambi, coincidentemente tem o mesmo nome da personagem Nyambi do conto “A lenda da noiva e do forasteiro” que, magoado com a indiferença de seu povo com o sacrifício de Jauharia, sai de sua aldeia para matar o invasor, trazer sua noiva de volta, dar esperança de continuidade para a existência da própria tribo e tentar libertar seu povo de um medo do passado. A personagem em nada se parece com o real histórico. Na ficção, Nyambi não tem centenas de mulheres e a única que poderia ter, lhe é negada, brutalmente. O noivo não é um grande guerreiro e não tem nenhum poder de liderança, pelo contrário, ele é liderado pelos homens mais velhos da aldeia, fracassa no intento de trazer sua noiva de volta e não trás nenhuma esperança para seu povo.
O que parece ser simples semelhança ou diferença é, na verdade, o retrato irônico de um povo que já foi próspero e corajoso, hoje, vive à sombra do medo do passado, depende de favores de outras tribos para sobreviver, são amafengu, capazes de entregar a um forasteiro a única mulher que poderia dar continuidade à existência de um povo. Este seria o sacrifício como garantia de tranquilidade, sem oferecer nenhum combate, nenhuma resistência. Um povo de homens guerreiros que agora depende da vida de uma única mulher: “O velho Nyalombe esticou o braço: – só ela nos pode salvar.” (p.133). Essa entrega sem combate é um forte reflexo de um triste passado, de uma memória coletiva com lembranças do dominador: “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LE GOFF,p.422).
A sombra do colonizador não poderia deixar de participar deste olhar ainda tão cristalizado na memória daqueles que foram colonizados, quer seja pelos portugueses quer seja pelo Amangwane. Assim sendo: se pensarmos o intruso forasteiro como sendo a imagem do colonizador teremos uma interpretação quase perfeita das seguintes simbologias: “homem com animal ou arma” – em muitas culturas africanas pode significar poder e superioridade; “forasteiro” – dependendo da sua deformação física pode estar marcando o grau das diferenças culturais, ou seja, quanto mais deformado for o estrangeiro mais diferente são as culturas, sem possibilidade de haver miscigenação por haver risco de contaminação. E foi exatamente o que aconteceu com Jauharia ao ter contato por algum tempo com o forasteiro, ela decide não voltar mais para o seu povo e Nyambi retorna sozinho à aldeia, disse ela: “- eu já amava esse homem, Nyambi.” (p.139). E mais uma vez vence o colonizador que, mesmo sem uma pretensão declarada à distância, retira da aldeia não só sua riqueza, mas toda uma esperança de vida. Jauharia está completamente contaminada, pronta para partir para outros mundos, aculturada, não vê a face do malogro escondida atrás das ações bondosas do intruso. Ela assume agora o papel do forasteiro e também sua missão: “A mão de Jauharia desceu sobre a besta, lhe alisou o pêlo, ordenando sossego.” (p.139) e pede para que Nyambi também se decida: “– Esta é a linha da fronteira, Nyambi. Agora escolhe: regressas à aldeia ou vais para o mundo?” (p.139). Mas o noivo ainda não estava contaminado e preparado para seguir caminho com Jauharia e prefere ficar em seu mundo sem entender os motivos de sua noiva: “Nyambi abanou a cabeça, em jeito de sacudir alma. Ficou de olhar mendigo, a crer que ela ainda pudesse sair do feitiço em que tombara. Mas Jauharia se emudecera, apenas deitando carícias sobre a fera” (p.139).
A densidade do conto nos permite ainda observar várias outras estruturas recorrentes que se apóiam na oralidade africana como os provérbios, presente em muitos de seus contos: “O velho proverbiou: o homem é como o pato que, no próprio bico, experimenta a dureza das coisas” (p.136) e “vingança é habilidade dos fracos.” (p.137); a mulher com criança, representando o desejo da fecundidade por muitas mulheres africanas: “que criança ela podia trazer consigo? Se nenhum filho não havia, então que corpinho nenecava Murima”(p.132); a união conjugal ou família como representação simbólica de tradição de ensinamentos: “os pais, no entanto, avisaram: essa menina é bonita de mais, seus modos pertencem a outra gente.” (p.135); o ancião que ensina e dá conselhos como o velho Nyalombe: “ – Agora vai, Nyambi. E confia que Jauharia é forte, capaz de dobrar o estrangeiro.” (p.136). Todas estas formas perpassam o conto “A lenda da noiva e do forasteiro” entre narrativas orais e memória coletiva.
Walter Benjamin nos diz em Magia e técnica, arte e política que “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência.” E “O menor sussurro nas folhagens o assusta.” (p.204) podemos dizer que, de certa forma, esta narrativa pode ser um pássaro desperto em pleno voo, tem suas asas nas características estéticas artesanais com o olhar voltado para e oralidade africana, desde os aspectos da linguagem oral e da memória aos aspectos histórico-sociais e culturais. Recontar a História de maneira outra é transmutação de voz, é também dar vida a outras vozes, neste caso específico do conto “A lenda da noiva e do forasteiro”, sem os códices dos modelos Ocidentais.
REFERÊNCIAS:
CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. In:______. A literatura e a formação do homem. São Paulo: Editora 34 ltda. 2002.
AUERBACH, Erich. L’humaine Condition. In:_____. Mimeses: A representação da realidade na leitura Ocidental. Ed. 5. São Paulo, Perspectiva S.A, 2004, p. 2049-276.
BAKHTIN, Mikhail. O discurso no romance. In:_____. Estética da criação verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In:______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COUTO, Antonio Emilio l. O embondeiro que sonhava pássaros. In:_____. Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005, p. 69-87.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: Visita à história contemporânea. S. Paulo: Selo Negro, 2005.
LE GOFF, Jacques. Memória. In:______. História e memória; trad. Bernardo Leitão [et al] 5 ed. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 2003
SECCO, Carmem Lúcia Tindó. A arte de magicar. In:______. A magia das letras africanas: ensaios sobre as literaturas de Angola e Moçambique e outros diálogos. 2 ed, Rio de Janeiro: Quartete, 2008.
Assim, o escritor dá a ver um novo florescer das velhas fórmulas do contar e mantém o “extraordinário” e o “misterioso” vivos dentro de suas narrativas com todas as suas formas artesanais do contador de histórias, dessa maneira, sua ficção vai se apropriando desses elementos, antes pertencentes a uma realidade social destituída de valor estético ou crítico para depois se transformar em ressoante grito de reflexão literária.
Leandro Dumont
Márcia Regina Zvolinski
Mas o que poderia parecer apenas mais uma história é, na verdade, uma densa ficção que reúne grande parte do folclore cultural moçambicano. O mito, o mistério e o extraordinário são elementos poderosos e antigos dentro das narrativas populares africanas, por vezes, confundem-se com os mitos ocidentais, dando novas formas às antigas, e criando novas possibilidades para as narrativas de ficção que, ganhando a artisticidade da oralidade, estes elementos se transformam em componentes literários ou signos orais representantes da cultura africana, deles dependem sua identidade e memória.