DE QUEM É A BUNDA?

        Depois de andar o dia inteiro pelas ruas, perambulando pelas notas de emprego, eu já nem sequer podia caminhar, um pouco de desânimo se abateu sobre mim. Sentei-me em um banco da praça com uma rachadura que o dividia ao meio, achei aquela rachadura parecida com a minha vida, totalmente trincada. Ambulantes passaram por mim, meia dúzia de entregadores de panfletos caminhou em minha direção, o barulho dos carros me incomodava os ouvidos, impedindo a minha concentração sei lá em que. Os pedintes mendigavam a minha volta, mas não me pediram nada.  Olhando aquelas pessoas apressadas, passando de um lado para o outro, eu me sentia “A mulher invisível de seis milhões de dólares”, com poucas diferenças, eu só não valia os seis milhões de dólares.
        Desempregada pela quarta vez parecia que nada dava certo, e a minha vida estava de cabeça para baixo. Jovem, atraente, sucesso com os homens, mas sem um níquel no bolso para gastar, na última noite sonhei com vitrines me chamando, eram Carmins, Pradas, Chaneis, Fendis... Definitivamente, não levava jeito para o trabalho pesado e nem para ser pobre, bem que poderia ser artista, uma cantora famosa, com certeza não passaria despercebida pela multidão.
        Em casa, à noite, lentamente, comi o último pão que me restava. Abri a geladeira e tomei água, sofregamente. A cama, desarrumada há dias, os lençóis já ganhavam nova tonalidade e o cheiro acre do quarto era uma mistura, sapatos, calcinhas, calças espalhadas, mofo e papéis de chocolates. Um notebook sobre o travesseiro era a última recordação do pai. Deveria ligar para os pais, pedir ajuda, mas isso me custaria uma bronca dos velhos. Não, essa não era a hora de voltar para casa, ainda não. Dormir talvez seja a melhor coisa a fazer, amanhã será um novo dia, pelo menos é assim que todo mundo diz quando quer se animar e se encher de esperanças. Mas a merda da esperança só chega tarde, tem muita gente pra atender. Meus olhos fecharam por um segundo, e eu pensava em como era bom nos tempos de adolescência, pelo menos tinha o financiamento da mãe, não chegava nem a ser uma mesada, era uma ninharia, mas livrava os créditos do celular.
        Pela manhã levantei logo cedo para enfrentar nova caminhada pelas ruas da cidade. Sentia-me aliviada e mais leve, depois de uma noite de sono, ao vestir a calça, eu a senti escorregar pelas pernas e formar um ninho aos meus pés, tornei a levantá-la e verifiquei o botão do cós, tudo em ordem, e ao soltá-la mais uma vez a calça caiu. Fiquei assustada em pensar que podia perder tantos quilos em um dia de caminhada, a ponto de emagrecer e não sustentar a própria calça. Corri para o espelho do banheiro, mas para a minha surpresa tudo estava lindo e maravilhoso como antes, aqueles belos ombros continuavam a enfeitar aquele belo corpo generoso e sexy... Olhei rapidamente para trás, pensei ter ouvido uma risada. Voltei para o quarto e mais uma vez tentei vestir a calça, foi quando pensei em apalpar os bolsos, para saber se tinha algum sobrepeso e, para a minha surpresa e desespero, senti falta da minha bunda, me apalpei mais uma vez para certificar aquilo que, com certeza era um engano, fiquei aterrorizada, corri para o espelho e, para o meu desespero, o fato fora confirmado. Eu estava reta da cintura para baixo, retinha como uma coluna de mármore branco.  De repente vi uma massa gorda saindo debaixo da cama, ainda com cara de sono... Mas que diabos está acontecendo aqui?
        – Mas é uma idiota mesmo, não reconhece nem a própria bunda.
        Aquilo foi assustador, eu estava ouvindo a minha própria bunda me ofender, bem ali, sentada na minha cama, ela caminhava de um lado para o outro como se estivesse refletindo sobre a existência humana, subitamente parou e disse:
        – Você não vale a bunda que tem, até parece que não mora no Brasil, mas eu vou resolver os seus problemas e é hoje, não saia daí, eu volto à noitinha.
         Desesperadamente insisti para que ela voltasse para o seu lugar. Não seria possível viver sem a minha bunda, com que cara eu iria sair à rua, procurar emprego, sair com os amigos, ir à praia... Isso sem falar no incômodo na hora de se sentar.
        – Primeiro os negócios, depois o divertimento. Se não der certo eu prometo que volto pro meu lugar, do contrário, você nunca mais precisará trabalhar.
        Logo no primeiro dia fiquei muita assusta com a possibilidade de perder a minha bunda pra qualquer um, e fiz muitas recomendações: “Veja lá o que vai fazer, não fale com qualquer um, e tome muito cuidado ao entrar em um ônibus muito cheio, fique esperta com a mão boba”, e lá se foi, toda faceira, já se rebolando.
        No dia seguinte, ainda não eram onze horas quando a minha bunda entrou pela porta do quarto do nosso pequeno apartamento... quer dizer, do meu apartamento! Trazia um óculos escuro no alto da cara e uma pequena sacola plástica entre as polpas que, com dificuldades, jogou sobre a cama. Abri a sacola e fiquei admirada com o maço de notas. Nunca tinha visto tanto dinheiro em minha vida. Perguntei como ela tinha conseguido tudo aquilo em pouco tempo e tudo que tive como resposta foi um sorriso esnobe... Fiquei gelada só de pensar no que ela poderia ter feito, mas a bunda tratou de me tranquilizar, dizendo que o dinheiro tinha sido conseguido de maneira honesta em um baile funk da periferia, só precisou rebolar durante uma noite em cima de um palco e depois do show recebeu o seu pagamento. Ah, ia esquecendo, disse a bunda, fui convidada por uma revista masculina, para um ensaio fotográfico, e isto é só o começo!
        Pela manhã, logo cedo, a bunda saiu dizendo que ia fazer um investimento nos negócios e que eu não me preocupasse, à noite estaria de volta. Mais uma vez fiquei em polvorosa, não podia imaginar o que ela estava planejando, sempre com aquele ar de mistério e um fio de ironia. Pois bem, não tinha mesmo muito o que fazer, o melhor mesmo era aguardar pra ver. Antes mesmo do anoitecer, a bunda entrou pelo quarto, dando voltas e girando as polpas feito doida, perguntando o que eu achava do novo visual. Ela estava mais rechonchuda, empinada e parecia mais dura. Não precisei perguntar duas vezes para ver os resultados do silicone. Esse era o tal investimento, para o ensaio fotográfico do dia seguinte. Apreensiva, mas satisfeita com transformações, tive que admitir que uma bunda bonita, realmente, faz milagre neste país.

 

Leandro Dumont

12/2011