BICHO CIVILIZADO
Eu nasci humano e me tornei bicho civilizado. Não preciso caçar pra me alimentar, por isso mato o que crio. Não muito raro mato alguns da minha própria espécie, por descuido ou por prazer. Não vivo ao natural, no meio do mato entre insetos e predadores. Sou civilizado, construí minha própria selva entre colunas de concreto, asfalto, vidro, aço e ferro.
Do alto da minha torre, onde fica a minha confortável toca, ainda posso ver os formigueiros do Azevedo, as muitas bertolezas e firmos, saindo de seus buracos ao pé do morro. Olho mais para baixo, à beira do asfalto e vejo o bicho do Bandeira, revirando o lixo e comendo detritos que ali deixei. São sub-humanos, uma raça inferior que devo preservar para o trabalho primário e mais grosseiro. Devo tomar muito cuidado com esta sub-raça, ela anda sempre em grupo, dentro de veículos coletivos apertados, todos compartilhando sudoreses, e o mesmo ar abafado e fedido. Ela cresce como uma massa fermentada. É uma espécie resistente, mas muito fácil de controlar quando bem alimentada. Normalmente, como medida profilática, um salário mínimo já é suficiente. Caso a dose não resolva há muitas outras medidas e procedimentos medicamentosos: acrescento um jogo de futebol para os machos e uma novela para as fêmeas, jogo milho para pipocas, queijo para pizzas e depois fabrico mais Coca-Cola e cerveja. Pronto, eles ficam muito felizes e sorridentes com tudo isso, e voltam mais dispostos para o trabalho na segunda-feira. Às vezes eles se excedem, brigam entre e si e, vez e outra um deles morre entre pauladas e pedradas. Mas isso tudo é necessário para que os machos se autoafirmem como donos do pedaço.
A fome parece não incomodá-los muito. As necessidades básicas parecem ser superadas e satisfeitas com acessórios tecnológicos, celulares, roupa de grife famosa, músicas de baixa qualidade, e muitos programas novelísticos com cenas de sexo, violência e vingança.
Tudo promovido pela minha mídia televisiva é imediatamente consumido sem qualquer questionamento, por isso tenho que ser criativo. É uma raça que gosta muito de rir na frente da televisão, mas não se trata do riso irônico de Gil Vicente ou Cruz e Souza. Aqui eles se divertem muito com a dor de seus semelhantes, daí eu criei vários programas para satisfazer esse comportamento sádico, hoje, apelidados de “vídeo cacetada”, estão em quase todos os canais.
Eu mando e todos obedecem. Se digo para comprarem “tchu tcha tcha”, todos compram, dançam e ficam satisfeitos e felizes, se eu mando consumir “ai se eu te pego!” “ai se eu te pego!” todos engolem e estufam o peito e dizem que Deus é brasileiro e que o Brasil foi abençoado por Ele.
O Brasil é a terra do carnaval, do samba e de muita gente feliz!
Leandro Dumont
21/07/2012